quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Sobre o filme O Marinheiro das Montanhas de Karim Aïnouz


por Letícia Amaral 

Acabo de sair de uma segunda sessão de "O Marinheiro das Montanhas", em cartaz desde 21 de setembro último em todo o Brasil. Fui na estreia e precisei ir mais uma vez para contemplar  a luz de Karim. Meus olhos estão vermelhos de choro de emoção. 

No roteiro mais pessoal de toda a filmografia de Aïnouz, nos deparamos com uma história de amor: a dos pais do cineasta. E com o devir desse amor: Karim e sua obra cinematográfica. Uma mãe cearense e um pai argelino. Eles se encontram nos Estados Unidos. Só agora conhecemos Iracema, a cearense que viajou para o exterior para estudar algas marinhas, mas caiu na armadilha da paixão... E regressou ao Ceará com o fruto desse amor no ventre. Sozinha. O namorado não veio. Ele retorna à Argélia para lutar na guerra da independência. A dor de ser deixada é algo indizível. Mas ser deixada grávida, aí é preciso ser um herói para suportar. Fico imaginando a dor dessa mãe solteira, que esperou por seu amor argelino tantos anos. Recebeu cartas, cartões postais e fotografias, mas nunca, nunca, nunca uma visita, só promessas não cumpridas. Conhecemos ambos através de fotografias que entraram no roteiro de "Marinheiros".  Dor também para esse filho, que só conhece o pai por fotografias. E cresce com essa falta. Me envergonho de ter sofrido por tão menos que isso. Minhas desilusões são pó diante da história de Iracema e do pequeno Karim, nome próprio que em Kabyle quer dizer "generoso". 

E é de uma forma muito generosa mesmo, sutil, muito suave que Karim narra essa história em forma de carta: uma carta para sua mãe Iracema, escrita por ele enquanto visitava a Argélia pela primeira vez em sua vida, em 2019, antes da pandemia do corona vírus. Dona Iracema, então, não estava mais entre nós. Partiu no ano de 2015, deixando a semente de Argel no peito do cineasta. Não há tom de rancor na carta. Karim tem uma alma superior. Muito pelo contrário. Quando ele chega a Tagmut Azuz, na Cabília, região montanhosa e fria, vai ao encontro de possíveis parentes. E os olha profundamente nos olhos. Há uma sequencia belíssima de primeiríssimos primeiros planos de muitos Aïnouz: é preciso olhar esse outro nos olhos, e profundamente.

Quanta coragem deve ter sido necessária para revelar ao mundo esse drama familiar... Um drama que, por outro lado, forjou a ferro e a fogo a personalidade de um cineasta sensível que opta por transformar sua vida em belíssimos roteiros de cinema. Há coragem e alegria no lugar de dor. 


Com um filme só matei minha dupla curiosidade sobre a Argélia: por causa de Karïm Ainouz e de Albert Camus, meu escritor favorito. E foi maravilhoso contemplar Argel e Cabília na película da Super 8, que eu havia visto pela última vez nas aulas sobre cinema da faculdade de comunicação. É uma cor linda a de Argel, uma cor dourada de sol, como a que Albert Camus sempre descreve, revelada com a película da Super 8. "É vintage que fala", declara decidido minha dupla da primeira vez que fui ver o Marinheiro, o menino Samuel, estudioso de cinema tão curioso quanto eu.

A equipe do filme também fiquei sabendo que foi reduzidíssima, contando apenas com um motorista, um tradutor e o próprio Karim operando a super 8 na Argélia. Um diretor de fotografia foi na sequência ao país incumbido de trazer belas imagens, e trouxe mesmo. Juntando com imagens de arquivo da guerra da independência da Argélia, deu um caldo de respeito.

Outros detalhes que fazem os filmes do Karim serem amados por nós cearenses é que sempre há conexões com Fortaleza nas narrativas. E confesso que ver nossa Fortaleza bela na telona do cinema é sempre um momento reconfortante, feliz, de aconchego.

Sei que amanhã vou lembrar de mais coisas... E talvez volte aqui para escrever. Mas por hoje está bom. Fiquemos, nos próximos dias, com as reflexões do Marinheiro e a alegria da trilha sonora vibrante como só as pistas de dança que o cineasta definitivamente nos proporciona em todos os seus filmes: de "Smalltown boy" de Bronski Beat a "Sweet Harmony" de The Beloved, saímos da sala com vontade de dançar para celebrar a vida, mesmo que ela seja dolorosamente imperfeita.