sexta-feira, 29 de novembro de 2019
Meu olhar sobre o filme Coringa
"É impressão minha ou o mundo está mais doido?"
Esta é a primeira frase dita por Arthur Fleck, em "Coringa" (2019), do diretor Todd Phillips. Uma frase colocada propositalmente no início do enredo que vai tratar do tema "loucura" com uma profundidade poucas vezes vista no cinema. E é só mesmo à luz da psicanálise que é possível fazer a leitura de Coringa
Pessoas nascem com problemas psiquiátricos ou são enlouquecidas por outras pessoas ou eventos? Digamos que o roteiro de Coringa opta pela segunda resposta.
Filho de uma mãe solteira (Frances Conroy) em precárias condições financeira e emocional, Arthur Fleck (intensamente e lindamente interpretado por Joaquin Phoenix, para mim ele leva o óscar de melhor ator em 2020) cresce com todos os "nãos" que a vida pode oferecer a um ser humano. Mais que dinheiro e conforto, a vida do personagem sempre careceu de afeto, apoio e equilíbrio familiar. E mais: não só lhe faltaram recursos indispensáveis, como lhe sobraram agressões e solidão. Mas na primeira infância, momento crucial para o desenvolvimento de um ser humano, ao mesmo tempo que são gravadas na consciência e na sub-consciência as impressões mais fortes que vão desenhar a alma de um indivíduo, ainda é limitado o espaço da memória consciente. Ou seja, muitas das agressões sofridas pelo pequeno Arthur até os 5 anos de idade, não ficaram gravadas na memória dele. Elas só vêm à tona mais tarde, de uma forma inesperada, e acabem reforçando a esquizofrenia e a quase psicopatia de Fleck.
Uma pessoa a quem a vida negou tudo, não teme nem se comove por nada. Afinal, por que continuar sofrendo se esse foi o lugar comum de uma vida inteira? Se a vida me deu as costas, pensa o sujeito diferente, porque eu iria me comportar bem?
Não é simples a reflexão sobre "Coringa". É impossível justificar a agressividade do personagem, ao passo que também é claro que igualmente impossível é ignorar os escabrosos eventos que construíram uma personalidade neurótica.
Apenas nos textos analíticos de cinema e psicanálise eu encontrei conforto para analisar "Coringa", um personagem capaz de cometer vários assassinatos e não deixar os expectadores furiosos. Muito pelo contrário. Torcemos (eu aposto que você também) para que "feliz", apelido cunhado pela mãe do mesmo, tenha êxito em cada uma das mortes do grupo de haters do metrô. O contexto do roteiro sempre mostra que há uma certa lógica do personagem na escolha de suas vítimas. É como se Fleck apenas tentasse se defender o tempo inteiro: da mãe que o castra desde o nascimento, dos colegas de trabalho que usam e abusam da prática do comportamento disrruptivo, dos haters que inavadem o metrô e a calçada praticando todo tipo neofacismo - do assédio moral à agressões físicas de fato.
Coringa é um mergulho nas relações humanas doentias, na frieza de um mundo pautado pela individualidade e pela indiferença: problemas que atravessam a frágil alma humana e a neurotizam.
E como o próprio Arthur escreve em seu diário: "O interessante de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como não tivesse". Arthur foi enlouquecido e sofre as consequencias disso, assim como as pessoas e o mundo que o cerca. E na loucura que ele vivencia há espaço para o humor e a arte. É como uma bela canção de Frank Sinatra, "Thats Life", que vemos o personagem ensaiar uma dança nos corredores do sanatório, enquanto refletimos com Sinatra "Há pessoas que se sentem bem pisando as outras" e assistimos perflexos o enredo chegar ao fim. Coringa vai ficar ressoando em mim por muito tempo, numa digressão necessária aos porões do meu inconsciente e ao sótão do mundo pós-moderno: um mundo que sim, meu caro Arthur, está cada vez mais lotado, mais doido e egoísta...Você tinha razão naquele dia que fez essa pergunta à assistente social indiferente.
Thats Life, by Frank Sinatra
https://www.youtube.com/watch?v=7niRS7Nh9c8
Na sequencia este texto estará gravado em formado podcast no soundcloud Culturecast by Letícia Amaral.
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